Com nome de flor, filha de Edna e João, e fruto de uma miscigenação tipicamente brasileira que mistura na sua riqueza genética negros, índios e brancos, a atriz Amarilis Irani, 29 anos, de São Paulo, só descobriu a força dos seus cabelos e da sua ancestralidade no início da vida adulta, quando cursou Artes Cênicas, na Universidade Estadual de Londrina. Desde criança fazia parte da sua rotina ir sempre ao salão com sua mãe para alisarem os cabelos e foi um espanto quando percebeu os seus cabelos encaracolados pela primeira vez. “Foi quase uma revolução entre amigos e familiares quando decidi cortar bem curtinho os meus cabelos para que os fios naturais pudessem aparecer”, conta. Dessa experiência de autodescoberta que, inevitavelmente, está relacionada à autoestima e ao empoderamento, nasceu o desejo de partilhar essa história e incentivar outras crianças negras. Então, convidou o amigo londrinense Luan Valero para escrever a dramaturgia da sua peça de estreia que traz a personagem Mavi, uma espevitada menina de 12 anos em uma saga lúdica e emocionante por suas raízes ancestrais tendo o cabelo como elemento de descoberta. “Emaranhada” estreou durante a pandemia e fez sucesso em vários festivais online. Em Londrina, será a sua terceira apresentação presencial – antes, realizou duas apresentações no Festival Palco Giratório, em Porto Alegre (RS), que encantou adultos e crianças. As apresentações de Londrina acontecem quarta e quinta-feira, às 19 horas, no Sesc Cadeião Cultural. Os ingressos estão esgotados, com fila de espera, caso haja desistência. Confira mais em entrevista concedida à Assessoria do FILO.

Como foi a sua experiência em Londrina, onde cursou Artes Cênicas?

Foi o meu primeiro vestibular e fiz aqui por indicação dos meus professores de São Paulo pela qualidade do curso de Artes Cênicas da UEL. Tivemos uma greve durante a graduação e acabou demorando cinco anos para eu me formar, em 2017, mas foi ótimo poder ficar um pouco mais aqui. Conheci muitas pessoas legais, trabalhei na área técnica e articulei muitas coisas na cidade. Londrina é muita acolhedora e estou emocionada por poder estar no FILO como atriz pela primeira vez.

Fale um pouco mais da sua experiência profissional aqui?

Atuei muito na área técnica de palco, backstage, luz, coordenação de palco, e trabalhei em vários festivais da cidade, Filo, de música, de dança…Eles fazem parte da minha trajetória, da minha vida, e hoje eu retorno com esse trabalho. Estou muito feliz de estar aqui, ainda mais por poder reunir pela primeira vez toda a equipe de Londrina que contribuiu de forma fantástica para esse trabalho.

Depois de se formar, como foi sua trajetória?

Voltei para São Paulo, capital, porque queria ter a experiência de atuar em uma cidade grande, levar a minha arte para o Brasil, alçar novos voos. Estou radicada em São Paulo e faço trabalhos no Rio de Janeiro, Paraty e mantenho meus contatos em Londrina. Minha vida é meio nômade (risos). 

E como surgiu a ideia de montar o espetáculo “Emaranhada”? 

Eu sempre quis falar sobre cabelo, pois sempre foi uma questão para mim. Quando eu era criança eu tinha medo de cabelo, e eu não entendia o porquê…

Qualquer cabelo? Longo, curto…?

Eu tinha medo de qualquer cabelo, tinha agonia. Quando os fios caíam em mim, eu ficava com medo e eu nunca entendi o porquê. Hoje, talvez, eu comece a entender um pouco isso… eu não aceitava os meus fios, não aceitava o meu cabelo.

Você alisava os cabelos? 

Desde a minha infância eu não conhecia os meus fios, pois eu comecei a alisar os cabelos muito cedo, em torno dos 12 anos, porque eu não tinha uma heroína negra como espelho. A minha mãe, apesar de ser uma heroína para mim, na época ela também alisava. Isso era o natural a se fazer e passou isso para mim. Eu sempre saía do salão com um cabelo que não era meu. Eu não conhecia o meu cabelo.

E como foi essa descoberta? 

Com o passar do tempo, já na faculdade, morando sozinha, sem poder voltar muito para casa, eu vi crescer uns fiozinhos na minha nuca, aqui atrás, cacheadinhos. Isso me causou certo espanto porque até a textura era diferente. Decidi cortar tudo para ver se ele iria nascer com uma força diferente. E ele foi crescendo, cacheando, ficando black e falei para mim mesma: esse é o meu cabelo, essa é a minha identidade. 

Atualmente está curto para facilitar a troca de perucas na peça? 

Hoje ele está curto de novo por conta de um preceito religioso. No candomblé temos que raspar a cabeça e entregar os nossos fios. É por isso que está curto de novo. Mas agora eu já posso deixá-lo crescer novamente.

A sua mãe chegou a acompanhar essa mudança?

Sim, e isso é muito emocionante para mim porque foi através do espetáculo, da personagem da Mavi, que a minha mãe, aos 60 anos, assume o cabelo dela pela primeira vez. Ela também faz a transição, raspa, e hoje tem um cabelo black lindo porque o cabelo da minha mãe é mais crespo do que o meu. Antes de eu vir para o FILO, ela falou: “Filha, vai feliz, porque a Mavi já faz parte da sua vida e, quem me dera, quando eu era criança, poder ter aprendido isso”. E ela até brincou: “Se ao invés de assistir ao ‘Rapto das Cebolinhas eu pudesse ter visto a Mavi, a minha vida seria diferente hoje”. O meu irmão mais velho, Luan, também assumiu o seu cabelo natural após assistir à peça. 

Foi um resgate importante…

Sim, hoje eu tenho orgulho em falar que eu sou preta, que tenho a minha ancestralidade e o meu cabelo crespo. É importante poder se reconhecer, esta sou eu. 

Fale um pouco da experiência de apresentar a peça em Porto Alegre (RS)

Foi muito bom e aconteceu algo bem especial. Um coletivo de mães pretas, o Quilombelas, participou e, no final, agradeceram emocionadas pelo fato da peça ter conseguido transmitir a mensagem que há tempos elas tentavam passar para as crianças, que ficaram encantadas com a Mavi. Finalmente, conseguiram compreender que o cabelo delas é lindo do jeito que é.

Quais são os novos projetos?

Iremos fazer uma temporada do espetáculo em São Paulo, no segundo semestre, e também estou gravando um documentário sobre a peça, que deverá estrear em São Paulo, em dezembro. A Mavi está com a agenda cheia. 

Podemos falar que o espetáculo tem a intenção de empoderar as crianças desde a infância?

Sim, acho importantíssimo falarmos de empoderamento para as crianças. Quando uma criança se aceita, se empodera, ela se multiplica e carrega outras crianças com ela também. Empoderar-se também é se emaranhar, criar uma rede de apoio pelas mesmas causas. 

(Ana Paula Nascimento/Assessoria FILO)