Ator participa do Festival Internacional de Londrina com espetáculo que mostra a relação do escritor japonês Kenzaburo Oe com filho, portador de deficiência intelectual

 

O ator Eduardo Okamoto volta ao Festival Internacional de Londrina (FILO 2015), com seu mais novo espetáculo: “OE”. O solo é inspirado na obra do escritor japonês Kenzaburo Oe, especialmente no livro “Jovens de um Novo Tempo, Despertai!”.  Em cartaz nos dias 29 e 30 de agosto, no Teatro Zaqueu de Melo.

 

O ponto de partida da peça é um livro contendo a definição de todas as coisas existentes no mundo. Como um legado do escritor para o seu primogênito com deficiência intelectual. E um sonho: no dia da sua morte, toda a experiência acumulada em si fluiria para o espírito inocente de seu filho. Leia, a seguir, entrevista que o ator concedeu ao FILO 2015:

 

 

Como surgiu a ideia de construir um espetáculo baseado na obra do Kenzaburo Oe?

A ideia de se inspirar na literatura japonesa como um todo foi minha. Por ser descendente de japoneses, meus avós paternos são japoneses.  E no meu espetáculo anterior, que trouxe para o FILO, tive uma preparação em Butô. E ter dançado Butô despertou alguma coisa em mim, de que eu precisava resgatar minhas raízes nipônicas.  Eu não tinha lido nada, nunca, da literatura japonesa e comecei a pesquisar diversos autores.

 

Entre tantos autores japoneses, o que te chamou atenção em Oe?

Kenzaburo Oe me chamou muito a atenção porque fala de uma relação de pai e filho.  Ele é um autor que, quando jovem, já era um escritor promissor. Aos 22 anos, ganhou o prêmio mais importante de revelação da literatura japonesa.  Mas aí ele teve um filho que nasceu com uma severa deficiência intelectual e, por conta disso, parou de escrever. Oe só voltou a escrever quando o filho já havia se desenvolvido bastante.  Logo que o filho nasceu, Oe teve o impulso de matar a criança, pois os médicos diziam que ele viveria como um vegetal. E, de fato, não falou uma palavra até os seis anos de idade. Os pais perceberam que o filho ficava muito tranquilo quando colocavam uma fita k-7 com sons de passarinhos gravados.  E no final, o narrador falava o nome do pássaro. Um dia, aos seis anos, a criança ouviu o canto de uma ave na rua e falou o nome do pássaro. Foi a primeira palavra que falou na vida. Então os pais perceberam que ele tinha uma sensibilidade auditiva muito grande e o colocaram em aulas de piano. A criança se tornou um bom pianista, depois um excelente compositor e seu primeiro disco, lançado no Japão, vendeu cerca de 500 mil cópias.  Oe escreveu a relação dele com o filho, e sua obra lhe valeu o Nobel de Literatura. O que me interessa, mais do que a história de superação, é a capacidade de Kenzaburo Oe alinhavar, em sua obra, dados biográficos com a criação de ficção, relacionando com mitologia, temas contemporâneos, problemas da sua vida particular com os que afligem toda a humanidade. Então ele chega à conclusão de que não existem problemas pessoais, que na verdade são atravessados por problemas coletivos. Essa escrita que mistura fatos privados com pública me interessou sobremaneira.

 

Como foi a construção da dramaturgia com base em uma obra tão grande?

Começou com o estudo amplo da obra do Oe, não só da relação com o filho. Ele tem uma obra fundamental e gigantesca, sendo considerado o Dostoievski do pós-guerra japonês. E apesar de ser pouco conhecido no Ocidente, especialmente no Brasil, ele tem uma obra com esta dimensão de clássico. Senti uma grande responsabilidade em levar o trabalho dele para a cena. Eu me interessei especificamente por uma obra, o livro “Jovens de um Novo Tempo Despertai”, que trata de um momento particular da vida do filho, que já tem 19 anos e o escritor já estava na meia-idade.  Oe começa a se perguntar: ‘Quando morrer, quem vai cuidar do meu filho deficiente?’. Uma pergunta, imagino, muito comum entre quem tem filhos com alguma deficiência. Então ele começa a escrever um livro com definições, um manual de existência para o filho, o que é um plano impossível e necessário. A obra é linda. Mas o livro tem 400 páginas e levar isso para a cena é impossível. Sobretudo porque isso está bem resolvido como literatura. Então chamei Cássio Pires, um dos dramaturgos mais talentosos da nova geração, que fez uma operação muito curiosa. OE tem uma prosa muito prolixa, escreve muito, e o Cássio fez o contrario: transformou a prosa em um poema para cena.  As mais de 400 páginas do livro foram transformadas em 14 páginas de versos. A estratégia foi de que todo aquele poder que está na obra original deveria também estar nos silêncios. Então você tem um verso e silencio. De maneira que o silêncio sustenta não só o verso, mas tudo o que está omitido no espetáculo.  

 

Você também está ministrando uma oficina no FILO, sobre dramaturgia do corpo. Qual a relação com o espetáculo?

Minha vida sempre passou pela busca do entendimento do corpo. Isso é fundamental para eu me entender como pessoa e como ator, pois lido com meu corpo profissionalmente. Uma coisa que perpassa meu trabalho sempre é uma dramaturgia do corpo, equivalente à precisão que o autor tece em sua dramaturgia textual. Ou seja, de que maneira o ator pode elevar sua criação ao estatuto de coautoria do espetáculo, e não relegar só ao autor a elaboração de dramaturgias. De qualquer maneira, gostaria de chamar a atenção de que neste trabalho que trago para o FILO existe uma zona de risco bem importante para mim. De fato, tem um trabalho corporal inegável. Fiz um estágio no Kazuo Ohno Dance Studio, no Japão, então tem uma perspectiva corporal bem ampla. No entanto, tem uma zona de risco que é o enfrentamento da palavra. O espetáculo tem muita palavra, que é um desejo mesmo. Já que tinha partido de uma palavra poderosa, que é a obra do Oe, quis que ela se exercesse com poder neste espetáculo. O espectador será convidado a fruir a palavra na sua inteireza, no sentido de que a palavra ajuda a despertar imaginações, que o espectador vai construir mundos a partir da palavra que ele ouve.

 

Como foi fazer este curso no Japão e como ele se reflete neste trabalho?

Foi fundamental ter ido para o Japão. Eu nunca tinha estudado literatura japonesa e nunca tinha entrado em contado com a cultura japonesa.  Apesar de ser descendente de japoneses, ouvi de meu pai que tinha feito força para eu não ser japonês, porque havia muito preconceito. Achava que não tinha nada a ver com o Japão. Mas foi pisar no Japão e começar a chorar de saudade de um lugar que eu não conhecia, por ter um reconhecimento inexplicável e um sentimento de que saudade é um algo que se aprende em algum nível. E estar no Kazuo Ohno Center Studio foi dar uma forma poética para isso no corpo, ultrapassar a experiência individual e transformá-la em linguagem. Estruturar um atravessamento destes que acontece na vida, como alguma coisa articulada. Isso foi um aprendizado fundamental no butô do Kazuo Ohno. Isso vai para cena não de modo coreográfico, mas como sinestesia, percepção que ultrapassa as palavras. Espero que isso esteja no espetáculo, um lugar que a gente percebe que tem humanidade, mas que não conseguimos dizer. Espero que vejam o lugar do butô, que a partir da experiência física do individuo seja possível encontrar a dimensão espiritual, cósmica do humano. É muita pretensão, eu sei, mas o que vi o Yoshito Ohno fazendo não pode me inspirar menos do que isso.

 

 

O que você espera inspirar no público que for ver o espetáculo?

Tem uma estratégia do Márcio Aurélio, inspirada na obra do Oe. Que é fazer com que o espetáculo indicie alguma coisa, que vai se completar na imaginação do espectador. Mais do que na cena, o espetáculo vai acontecer na cabeça do espectador. Por isso, a palavra tem uma importância fundamental, como uma espécie de portal que se abre a partir de sua enunciação. Isso tem a ver com o Oe, quando ele fala que a ficção tem uma missão no mundo: ‘eu escolhi a imaginação como metodologia de observação do mundo contemporâneo’. O que eu espero então é que o espectador ajude a fazer a obra, que ele ajude a construir os vazios que estão na obra, que ele venha como um coautor, venha para criar junto. Talvez neste exercício de criar um espetáculo, a gente se lembre de que há sempre um mundo inteiro por fazer, que o mundo não chega pronto e acabado. É sempre uma experiência de abertura para que a gente de nossa parcela de contribuição para que o mundo seja sempre outro.

 

Como é voltar a se apresentar no FILO?

É uma alegria tremenda volta para o FILO. Tenho uma relação de afeto com este Festival. E posso dizer que, sem sombra de dúvidas, é uma plataforma muito importante para a reflexão das artes cênicas em nível nacional e internacional, ainda mais num panorama de crise, em que a gente sabe que fazer cultura, manter um festival como este, com esta importância, é uma luta. E não só sua importância em termos culturais, mas também em termos pessoais, pois este foi um dos primeiros grandes festivais que me apresentei, em 2006, com o espetáculo “Agora e na Hora de Nossa Hora”.   E, de fato, a partir daqui muitas coisas aconteceram em minha carreira. Como ter sido convidado para levar meu trabalho para a Suíça, até coisas que se desdobraram ao longo do tempo, como relacionamentos, parcerias, da formação de meu olhar por causa de espetáculos que assisti no Festival. Quero dar vivas ao FILO que chega aos 47 anos. E 47 anos para um festival significaria na vida de uma pessoa viver 350 anos. Fico muito feliz de poder participar deste acontecimento.

 

GUTO ROCHA/ASSESSORIA FILO