Em entrevista para o FILO, Grace Passô fala sobre a “Vaga Carne” que está sempre em busca da sua identidade
Em mais de 25 anos de carreira, a mineira de Belo Horizonte (MG), a atriz, dramaturga e diretora Grace Passô participou de mais uma edição do Festival Internacional de Londrina – FILO 2022, desta vez com o espetáculo-solo “Vaga Carne”, que traz em cena uma busca errante sobre a construção de identidade por meio de um corpo e voz femininas, em um jogo intenso de corpo e movimento. No intervalo do seu ensaio geral, na Divisão de Artes Cênicas/UEL, Grace Passô, deu uma pausa para um cafezinho e conceder entrevista para a equipe da Assessoria do FILO.
O “Vaga Carne” aborda sobre a construção de identidade. Esta temática sempre fez parte da sua trajetória artística ou foi algo que foi amadurecendo ao longo do tempo?
Existem algumas questões que são indesviáveis que, de certa forma, acabam tocando questões essenciais da sociedade brasileira, a respeito de coisas mais importantes, que reflito como artista na minha vida, independente da arte ou não. O “Vaga Carne” atravessa muitas questões, por exemplo, relacionadas à negritude, o fato de ser uma mulher em cena, o que submerge desse fato em si; a peça tenta escavar os motivos disso…Mas, muito mais do que uma pesquisa disso como assunto, eu sinto que esses assuntos atravessam a minha vida de forma tão estruturante que eles indesviáveis. Qualquer assunto que eu abordar vão trazer essas questões. Assuntos que me estruturam nessa sociedade e, portanto, impossível de me desviar deles.
E foi assim desde o início da carreira?
Sempre esteve presente na minha vida, de alguma forma, mas isso é mais visível e intencional agora, sem dúvida nenhuma. Eu acho que eu consegui construir um pensamento sobre essas questões, de forma mais visível, nos últimos anos.
Você sempre quis ser atriz? Chegou a pensar outra profissão? Como foi a sua formação?
Sim, e é até um pouco sem graça (risos), porque foi assim que aconteceu pra mim: não passei por outras áreas, não houve mudança radical, o que aconteceu foi me interessar por outras manifestações de linguagem artística, como muitos artistas chegam a se interessar também. Eu comecei fazer teatro amador aos 14 anos. Mais tarde, eu entrei numa escola de formação técnica de teatro de Belo Horizonte e formação profissionalizante. O curso de graduação em artes cênicas de Belo Horizonte só começou em 1999. A minha geração, em termos de escola, foi muito formada por cursos técnicos e cursos amadores.
O que motivou o seu interesse em fazer teatro na adolescência?
De fato, minha família me incentivava muito a fazer teatro, até porque eu era um pouco tímida e me propuseram essas aulas, assim como outras, e eu acabei me interessando pelo teatro. Eu tinha curiosidade, interesse, o teatro é um estudo da expressão, das possibilidades da expressão do nosso corpo.
Como parte da programação do Filo 2022 será apresentado o espetáculo infantojuvenil “Emaranhada”, de Amarilis Irani, de São Paulo, que resgata, de certa forma, a construção de identidade por meio do elemento dos cabelos. Como foi essa questão para a Grace criança, a relação com a sua autoimagem?
Especificamente, sobre o meu processo de conscientização do fato de eu ser uma pessoa negra, ao longo da minha história, assim como para uma grande parte de pessoas negras no Brasil, é doloroso e espetacular, no sentido de me aproximar das militâncias negras, o que fez eu entender quem eu sou e, mais do que isso, a dimensão do quanto eu não pude ser, não se pode ser nesse país. Me fez ter uma outra perspectiva desse país, me fez conseguir, algo muito difícil mesmo, que é escapar de certas armadilhas muito elaboradas de um sistema histórico, muito opressor, de várias formas. Claro que fui uma criança que viveu questões relacionadas a isso, como toda criança brasileira. Eu fui mais uma criança brasileira que viveu dentro de um país racista, não tem como não ter vivido questões muito complexas, assim como vivo hoje.
O tema identidade é muito complexo, não é mesmo?
Falando ainda de identidade, ela esbarra, sim, no modo de como a gente se vê, como a gente se constrói, como a gente constrói a nossa relação com beleza, com o próprio corpo… o cabelo, especificamente, ele é um constructo de identidade dentro do histórico negro, que daria uma longa entrevista. É muito mais do que uma questão de alisar ou não os cabelos. E é algo que nós, negros, mulheres e homens, ao longo do tempo, aprendemos a entender que a questão é muito maior; existe também uma apreensão sobre uma ideia de empoderamento que, obviamente, dentro do universo que vivemos superficial, ela é muito maior do que isso. Os valores que o cabelo negro traz, por trás dele, enquanto resistência, identidade, de uma série de questões. Ele é, sem dúvida nenhuma, um símbolo muito nítido da história desse corpo negro, ao longo tempo, e de como a sociedade lida com esse cabelo. É uma questão maior, não é só se você alisa, você é uma pessoa que ainda não abraçou a questão negra, e, se você não alisa, é uma pessoa empoderada e abraçou as questões negras. Inclusive, tem muitas pessoas que alisam e são pessoas extremamente conscientes. Está ligado a muitas questões maiores mesmo.
Uma construção necessária…
Eu fui mais uma criança que foi se construindo, ao longo do tempo, indo atrás de referenciais de pessoas, de referências, de ações, onde eu pudesse me enxergar, entender o que eu significo, o que o meu corpo significa nessa sociedade, e ter um posicionamento mais crítico em uma sociedade que é tão perversa com alguns grupos sociais. Foi um processo ao longo do tempo, com aquelas mesmas questões de sempre sobre crianças negras que não conseguem encontrar referências na televisão, de viver uma solidão referencial nas escolas, tudo isso eu passei também mas, ao longo do tempo, e também com o teatro, é que eu fui entender como ter uma posição mais crítica em relação ao que isso significava para além de questões íntimas e pessoais, mas isso dentro da sociedade, de que medida eu era uma peça desse sistema social, que opera, de forma repetida, com determinadas pessoas, de determinados grupos sociais. E todo esse processo de me entender com a minha beleza foi caminhando junto com o meu processo de conscientização
O texto de “Vaga Carne” é de sua autoria. Poderia explicar melhor a ideia do título?
É um jogo com a ideia do vagar, como algo que anda sem rumo, sem objetivo, e a ideia de “vaga” como algo vazio também. Na narrativa da peça, esse corpo, de mulher, que é invadido por uma voz, é uma verdadeira saga desse corpo em busca de sentidos pra vida, pro viver. Esse corpo, ao longo da história, vai tentando achar objetivos na sua saga da vida. E quando esse corpo começa a vagar ele está em busca de suas identidades, e identidade é algo em construção. Essa ideia de vagar tem a ver com esse caminho, que ao mesmo tempo que é maravilhoso, também exige muito engajamento. Caminho que, às vezes, a gente nem sabe onde vai dar; que a gente vaga, o corpo humano, a nossa existência vaga à procura de pertencimento. Isso tem a ver com a ideia de construção identitária. A gente vai ao longo da vida tentando encontrar a nossa identidade porque a gente precisa se sentir pertencendo a alguns lugares, grupos, conjuntos de pessoas…Esse caminho não é capitalisticamente objetivo, ele é uma verdadeira saga, onde durante muito tempo, vamos vagando, construindo o que somos. Refere-se também um pouco com a ideia do nosso corpo que ao mesmo tempo é tão cheio de significados, identidades, mas também, às vezes, se sente vazio. De modo geral, a peça tenta falar um pouco de sentimentos contraditórios que existem por trás da ideia de construir a sua identidade, que hoje está muito ligada a uma ideia de superação, de certezas, de força, mas todo esse caminho de construção política, de sua identidade, perante a sociedade, exige muito que cada um lide com suas próprias contradições também, pois o caminho em si também é contraditório. Para grupos sociais, historicamente reprimidos, esse processo é ainda mais difícil e contraditório. É preciso entender as armadilhas, tem a ver com a saga engenhosa, árdua, de um corpo conseguir criar a sua identidade, construir uma relação de pertencimento.
Ana Paula Nascimento
Assessoria FILO
FOTO: Celso Pacheco/Assessoria FILO