Em “O Açougueiro”, violência e intolerância assombram uma relação que foge dos padrões
O corpo do ator pode expressar palavras que vão muito além do texto encenado. Valendo-se de uma dramaturgia contundente, de um corpo expressivo e da ausência de cenário ou elementos de cena, a mensagem de alerta por um mundo mais tolerante, e em defesa do amor acima de qualquer diferença, soa mais forte e clara. Pelo menos é o que busca o ator pernambucano Alexandre Guimarães, com o espetáculo “O Açougueiro”, que ele apresenta no FILO 2016, nos dias 7 e 8 de setembro, às 19 horas, no Teatro Zaqueu de Melo.
A peça conta a história de Antonio, um sertanejo que viveu uma infância de fome na caatinga e sonhava em ter seu próprio açougue. Embrutecido pelas agruras de uma vida árida, Antonio acaba suavizado pelo amor de Nicinha, uma jovem prostituta. Este amor rompe preconceitos e convenções sociais e, por isso, não é aceito. “A sociedade não a reconhece como uma mulher que pode ter uma vida diferente, ser a dona do açougue com o marido ou qualquer outra atividade que não seja a prostituição”, comenta Alexandre.
O preconceito e a intolerância são justamente temas que o ator busca trazer para a discussão e reflexão com este trabalho. Guimarães afirma que a violência contra a mulher foi o ponto de partida, pois Pernambuco, segundo ele, já registrou índices alarmantes nesta triste estatística.
“E não é só a violência física, mas também aquela promovida pela imposição hierárquica. Esta violência pode estar dentro de nossas casas, em nossa família. E todo mundo, em algum momento, pode sofrer algum tipo de violência como a Nicinha – seja um negro, um evangélico, um migrante, ou então ser o seu opressor. E é aí que ‘O Açougueiro’ entra, através do mundo encantado do vaqueiro, do aboio. O teatro está aí para transformar ou, no mínimo, provocar um olhar mais crítico nessas relações”, diz.
Pesquisa no sertão
Em sua pesquisa para a construção do espetáculo, Alexandre Guimarães passou uma temporada em Saloá, cidade com pouco mais de mil habitantes no sertão pernambucano. Lá ele conheceu um abatedouro, onde acompanhou desde o confinamento do boi, o abate até a distribuição da carne nas feiras livres. “Foi modificador. Pois os homens que matam o animal são os mesmos que dão vida ao bezerro. Por isso, há um respeito grande, já que ali está o seu sustento”, comenta.
No sertão, o recifense Alexandre Guimarães teve contato também com costumes e cultura locais. Acompanhou uma cavalgada e uma missa do vaqueiro em Salgueiro, também no sertão pernambucano. Lá ele se deparou com uma situação inusitada e, ao mesmo tempo, alentadora. “Acompanhamos uma missa com 70 vaqueiros, todos encourados, e dois deles portavam bandeiras do movimento LGBT, entre as bandeiras de Pernambuco e do município”, conta.
“Conversei com eles, e me disseram que não eram homossexuais, mas que as relações humanas precisavam ser discutidas, pois sabiam o quanto era sofrido alguém ser afastado de seu grupo por ser diferente. Um discurso consciente, quebrando qualquer paradigma que a gente tem dos vaqueiros, como sendo gente truculenta e sem informação”, comenta.
“O Açougueiro” já foi visto em quase todo o estado de Pernambuco e em parte da Paraíba, além de Curitiba (PR), Itajaí (SC) e agora chega a Londrina. Guimarães conta que tinha duas grandes preocupações sobre como estes públicos tão distintos iriam interpretar sua obra. No caso da plateia do Nordeste, ele diz que temia ser visto como um “estrangeiro” falando de coisas que pertencem àquela realidade. “Mas eles se envolveram de maneira muito forte, cantavam as canções que conheciam, se reconheceram neste personagem”.
Em Curitiba, onde foi apresentado pela primeira vez fora do Nordeste, o trabalho também teve boa receptividade. “Muita gente não sabia o que era um aboio, por exemplo. Mas tocamos em coisas que são universais, como uma língua falada por todos os povos, quando se expressa o amor e a dor. As pessoas se emocionaram. Provocamos um estado de reflexão, em que elas não conseguem expressar verbalmente as sensações do que vivenciaram. O público fica em suspensão”, finaliza.
Teatro Físico
Além do texto contundente, o ator explora todas as possibilidades do corpo, por meio do chamado Teatro Físico. Em cena, o corpo é o centro de toda a teatralidade do espetáculo, que não tem cenário ou objetos. “É um bom exemplo do chamado ‘teatro pobre’. Um ator jogador pronto para se vestir, sem acessórios; os sete personagens que vive, chamando o público por meio de olhares ou dialogando com ele. Com isso, o ator precisa estar muito preenchido de intenções. Aí entra o teatro físico, que ajuda ascender a criatividade do ato. É um espetáculo expressionista mas que, ao mesmo tempo, beira o naturalismo”, conclui.
Esta semana, Alexandre Guimarães ministrou uma oficina no FILO sobre “O Corpo do Ator e sua Arte Ritualística”. Trabalhou com um grupo de inscritos a preparação de atores junto à descoberta de um teatro ligado ao ritual da busca pela interpretação, estimulada pelo uso do corpo como agente e a linguagem não verbal do intérprete. Guimarães baseia sua pesquisa em Eugenio Barba e Jerzy Grotowski, aliado às matrizes do corpo nas manifestações da cultura popular nordestina.
Ficha Técnica
Intérprete: Alexandre Guimarães | Texto/Encenação/Plano Luz: Samuel Santos | Preparação Vocal: Nazaré Sodré | Preparação Corporal/Figurino: Agrinez Melo | Maquiagem: Vinicius Vieira | Operação de Luz: DomDom Almeida | Fotos/Ilustração: Lucas Emanuel.
O AÇOUGUEIRO – ALEXANDRE GUIMARÃES — RECIFE, PE
7 E 8 DE SETEMBRO — 19H
TEATRO ZAQUEU DE MELO (AV. RIO DE JANEIRO, 413)
DURAÇÃO 50 MIN – CLASSIFICAÇÃO ETÁRIA: 16 anos
Serviço:
Festival Internacional de Londrina – FILO 2016
De 26 de agosto a 11 de setembro
Realização: Associação dos Amigos da Educação e Cultura Norte do Paraná e Universidade Estadual de Londrina
Patrocínio: Petrobras, Governo Federal, Prefeitura de Londrina / Secretaria Municipal da Cultura / Programa Municipal de Incentivo à Cultura (Promic), Universidade Estadual de Londrina, Unimed Londrina, Horizon – John Deere.
Informações: www.filo.art.br